14 de maio de 2013

Sobre o "Lá Ele"

Recebi por e-mail este estudo, este tratado sobre o "Lá Ele", uma expressão de vital importância para o convívio social na Bahia ( ou pelo menos em Salvador ).

Não sei quem é o autor, mas este texto é valioso demais e compartilho ele aqui.

** Update **
30/09/2013: Saiu uma reportagem sobre o dialeto das rimas e duplo sentido no Correio. Vale a pena conferir depois de ler o texto abaixo =)

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Sobre o "Lá Ele"


O "Lá Ele" é uma das mais importantes expressões do idioma baianês, mais especificamente do dialeto soteropolitano baixo-vulgar. Segundo os léxicos, a expressão significa "outra pessoa, não eu" (LARIÚ, Nivaldo. Dicionário de baianês. 3ª ed. rev. e ampl. Salvador: EGBA, 2007, s/n).

A origem da expressão é ambígua. Alguns etimologistas atribuem seu surgimento às nativas do bairro da Mata Escura, enquanto outros identificam registros mais antigos no falar dos moradores do Pau Miúdo. O certo, porém é que o "lá ele" desempenha papel fundamental em um dos aspectos mais importantes da cultura da primeira capital do Brasil - a subcultura urbana do duplo sentido.

Desde a mais tenra infância, os naturais da Soterópolis são treinados para identificar frases passíveis de dupla interpretação. Da mesma forma, os soteropolitanos aprendem desde cedo a engendrar artimanhas para que seu interlocutor profira expressões de duplo sentido.

Assim, as pessoas vivem sob constante tensão vocabular, cuidando para não fazer afirmações que possam ser deturpadas pelo interlocutor. Para indivíduos do sexo masculino, por exemplo, é vedado conjugar na primeira pessoa inocentes verbos como "dar", "sentar", "receber", cair", "chupar" etc. O interlocutor sempre estará atento para, ao primeiro deslize, destruir a reputação de quem pronunciou a palavra proibida.

Como antídoto para a incômoda prática, o "lá ele" surgiu como uma ferramenta indispensável na comunicação do soterpolitano. Assim, o indivíduo que falar algo sujeito a interpretações maliciosas estará a salvo se, imediatamente, antes da reação de seu interlocutor, falar em alto e bom som: "lá ele!"

Por exemplo, qualquer homem, por mais macho que seja, terá sua orientação posta em dúvida se falar "Neste Natal comi um ótimo peru". Contudo, se sua frase for "Neste Natal comi um ótimo peru, lá ele!", não haverá qualquer problema. No mesmo diapasão, confira-se:

(a) se um colega de trabalho enviar um e-mail perguntando "vai dar para almoçar hoje?", não se pode responder apenas "Sim"; deve-se responder "Lá ele. Vamos almoçar";

(b) se, na pendência do pagamento de polpudos honorários, um advogado perguntar ao outro "Já recebeu?", a resposta deverá ser "Lá ele. Já foi pago";

(c) ou, ainda, se alguém nasceu no citado bairro do Pau Miúdo, o que poderá transformar sua vida em um interminável festival de chacotas, deverá sempre valer-se da ressalva: "eu sou do Pau Miúdo, lá ele".

Para melhor compreensão da matéria, reproduz-se abaixo um exemplo real, ocorrido no último domingo durante a transmissão do épico triunfo do glorioso Esporte Clube Bahia sobre o Atlético de Alagoinhas:

- Locutor: "Subiu o cartão amarelo?"

- Repórter: "Subiu, o amarelo e o vermelho."

- Locutor: "Mas você está vendo subir tudo!"

- Repórter: "Lá ele!"

Note-se que o "lá ele" pode sofrer variações de gênero e número, de acordo com a palavra que se pretende neutralizar. Se, antes de uma sessão do TJBA, alguém perguntar "Você conhece os membros da turma julgadora?", deve-se objetar com veemência: "Lá eles!". Ou se o cidadão for à Sorveteria da Ribeira e lhe perguntarem "Quantas bolas o senhor deseja?", é de todo recomendável que se responda "Duas, lá ele, por favor".

Há também a situação de um homem contar uma piada, ou um caso, verdadeiro ou fictício, que se passou com uma mulher. Aí o "lá ela" é que será usado. Um exemplo disso seria "E lá pelas tantas a mulher disse: Se você não vier deitar agora, "lá ela" vai lhe buscar à força". 

A cultura duplo sentido oferece outros fenômenos da comunicação interpessoal. Veja-se, a título de ilustração, o sufixo "ives".

Em Salvador, não se pode falar palavras terminadas em "u", principalmente as oxítonas. Independentemente de sexo, idade ou classe social, o indivíduo poderá ser mandado para aquele lugar (lá ele). A pronúncia de uma palavra que dê (lá ela) rima com o nome popular do esfíncter (lá ele) será prontamente rebatida com a amável sugestão. Para fazer face ao problema, a vogal "u" passou a ser costumeiramente substituída pelo sufixo "ives".

Destarte, o capitão da Seleção de 2002 é tratado como "Cafives"; o Estádio de Pituaçu virou "Pituacives"; o bairro do Curuzu se tornou "Curuzives"; a capital de Sergipe passou a ser chamada de "Aracajives"; e as pessoas que atendiam pela alcunha de Babu, com freqüência utilizada na Bahia para apelidar carinhosamente pessoas de feições simiescas, há muito tempo passaram a ser chamadas de "Babives".

(*) comentário do leitor:

Acho que, antes de surgir o "ives", veio o "i", algo como jogar a pronúncia para o francês. Algo como ocorre com menu, que é pronunciado "meni". Do "i" para o "ives", foi uma questão de adaptar a fala.

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